segunda-feira, 20 de outubro de 2008

A adiposíssima senhora elefântica gorda


Havia acabado de chegar à festa de casamento do meu ilustríssimo amigo Petrônio Nevadas. Dirigi-me juntamente com uns amigos a uma mesa localizada no final do salão. O local onde se realizara a festa era grande e espaçoso, mas como eram muitos os convidados, o aperto foi inevitável. Sentamo-nos à mesa, acomodamo-nos e começamos a beliscar alguns aperitivos. Ia tudo muito bem até uma elefântica senhora gorda começar a estragar minha noite. Ela não era obesa, mas era gorda o suficiente para incomodar qualquer pessoa no raio de alguns metros. Nada contra o seu excesso de tecido adiposo. O problema é que ela resolveu sentar-se ao meu lado. Sem que houvesse o mínimo de espaço entre a mesa que estávamos, que se localizava na quina entre duas paredes, a adiposíssima senhora tomou uma cadeira e sentou-se numa proximidade tão grande que o ar tinha que pedir licença para passar entre nós. Pior, ela me pressionou literalmente, entre a mesa e a parede, não me dando espaço para me mexer ou mesmo sair. Como havia outra mesa próxima à nossa, também paralela, e próxima à parede, nenhum dos meus amigos podia sair. Respirei fundo, apesar do pouco espaço, e pensei “Isso não vai acabar com minha noite”. À proporção que a banda tocava e o tempo passava a ilustríssima senhora se animava. Muita comida e bebida de graça... Acho que era o paraíso para ela. E ela se animava cada vez mais. Passava o garçom, ela não perdia um copo. Mas tenho que admitir que gentilmente ela sempre nos oferecia bebida também. Mas isso não compensa a falta de desconfiômetro dela. Ao passo que ela se empolgava e conversava com umas amigas próximas, ela gesticulava e gesticulava, e o espaço entre nós que era negativo, se tornava cada vez menor. E passava o garçom, e ela me perguntava “Não quer um salgado ou um doce, meu lindinho”. E eu pensava “Não, só quero que a senhora exploda de tanto comer e beber”. E ela comia feito um animal esfaimado. A boca cheia de farelos permanecia aberta durante a mastigação... Era uma cena deprimente. E ela ria e gargalhava, e seus movimentos se tornavam mais efusivos. Eu já não sabia onde ela terminava e onde eu começava, éramos praticamente a mesma pessoa. E ela levava a risca a teoria de que dois corpos não ocupam o mesmo lugar no espaço. A cadeira dela junto com a minha já era quase uma poltrona para ela. E eu praticamente já não existia não fosse a minha consciência. Ela continuava gargalhando e se refestelando com os doces, salgado e bebidas. Foi então que comecei a orar, pedi a Deus que fizesse surgir uma mesa vazia em algum lugar para que ela e suas amigas pudessem “habitá-la”. Mas acho que o som da festa estava alto e Deus não me ouviu. Aquela situação já estava me deixando sem humor, na verdade já estava ficando enfurecido com toda aquela espremeção. Foi então que tomei uma decisão, tentei respirar fundo, mas não havia espaço o suficiente, consegui pelo menos franzir a testa numa demonstração de indignação. Tentei levantar a mão para apontar-lhe na cara e dizer-lhe umas verdades, mas meu braço direito encontrava-se numa posição um tanto inoperante, esmagado entre a sehoríssima gorda e o recosto de minha cadeira. Então reuni todas as minhas forças, meus olhos já faiscavam de raiva, e, quando já articulava as palavras para lhe dizer umas boas, ela levantou. Olhou para mim com olhar generoso e muito gentil e disse “Meu queridinho, vou à outra mesa. Desculpe deixá-lo sozinho.” E a hipopotâmica senhora se deslocou indolentemente para seu novo habitat. E eu... Eu tentava me recompor e re-encaixar todos os meus ossinhos deslocados pelo imenso e gentil peso daquela adiposíssima senhora elefântica gorda. Agora que me dei conta... Ela parecia muito com o jabuti manco da outra história!

Cruz, Fabio. Compilação de minhas verdades: por Augusto Guerra; pg. 42-43.

segunda-feira, 6 de outubro de 2008

Mingau, somente R$ 1,00.


Joventino era um jovem rapaz. Trabalhador e honesto. Era daquele tipo de sujeito que se preocupava não só consigo, mas com os outros também. Se alguém passasse na sua casa pedindo algum alimento, ele prontamente o dava sem nem pestanejar. Fosse um quilo de arroz, um quilo de fubá ou um quilo de qualquer coisa. Certo dia não tendo muito em casa, dera para uma senhora o único pacote de biscoito que tinha em casa. Ficou sem ter o que comer, mas foi solidário. Alimentou a alma. Apesar de toda essa bondade e altruísmo, se o assunto fosse dinheiro, Joventino, esquecia toda a solidariedade humana e virava o egoísmo em pessoa. Quando lhe pediam algum emprestado todas as desculpas apareciam. Nunca tinha dinheiro para ninguém:”Caramba, estou todo endividando”, ou “Tô no maior aperto esse mês, não vai dar”. Além de outras saídas que ele sabia inventar muito bem. Um real que fosse, nunca tinha na carteira. Mas curiosamente tinha ele um bom emprego e um bom salário. Sobre esse último nada comentava ou conversava. Nem seus amigos mais próximos sabiam quanto ao certo ele ganhava.

Fato é que todo dia ao ir para o trabalho, Joventino entrava em conflito com sua consciência. Apesar de canguinha não gostava de mentir ou enganar as pessoas. E havia, nas proximidades de seu trabalho, um mendigo que sempre o abordava no mesmo horário e no mesmo lugar, “Uma esmolinha pelo amor de Deus, meu filho”, ao que Joventino sempre retorquia ou fazendo um semblante de pesar, ou dizendo “Não tenho meu amigo...”. Na verdade o tinha. Mas a mesquinharia o impedia de compartilhar seu numerário. Todo dia o mesmo diálogo. Ele já não agüentava mais aquilo. A consciência lhe doía de tanto mentir. O que fazer? O que dizer? Ficar mudo seria a solução? Mudar de caminho? Ignorar o pedinte? Não. Não valia a pena se tornar refém de uma situação tão... Pequena. Pensou, pensou, pensou! Queimou a mufina! Depois de dias muitos de labor mental, eis que veio a grande idéia! Sim, seria aquilo. Não mentiria nem daria seu tão “pobre” e suado dinheiro. Pronto, no dia seguinte não mais teria aqueles terríveis conflitos psicológicos.

Era manhã, Joventino acordara confiante e decidido como nunca. Disposto e alegre saíra para o trabalho; já próximo deste avistara o pedinte. Encaminhando-se na sua direção, olhara para ele de forma fixa e inexorável. “Uma esmolinha pelo amor de Deus, meu filho”, “Vou ficar devendo, meu chapa!”, respondeu Joventino com naturalidade. Era isso! Sem mais crises existenciais. Que felicidade, sem mentiras.

Depois disso, foram todos os dias, o mesmo diálogo. Ele na prepotência de sua fuga e o velho mendigo na sua miséria de sempre. Certa manhã, quando já se encontrava nas proximidades do seu trabalho, sem que percebesse a aproximação, o velho e conhecido pedinte o abordou:

- Com sua licença – disse o pedinte.

- Pois não! – respondeu Joventino, um tanto assustado.

- O senhor, por certo, deve estar estranhando essa minha abordagem. Mas é que já se passaram seis messes, e o senhor continua me devendo.

- Como é? Mas eu...

- O senhor pode não ter se dado conta, mas eu contei todos os dias, desde que o senhor me disse pela primeira vez “Vou ficar devendo”.

-Mas isso é só um modo de falar!

- Então o senhor foge dos seus compromissos. É um caloteiro!

- Epa! Pera, lá! Sem ofensas. Nunca dei o direito de ninguém me chamar dessa forma. Sempre pago os meus devedores em dia.

- Mas, a mim, não!

- Pois quanto lhe devo, velho homem! – disse Joventino, visivelmente transtornado.

Nesse momento Joventino esboçou no rosto um sorriso de canto de boca. Não sei se intencional ou não. Talvez uma mistura de ironia com nervosismo. Não saberia dizer, ao certo.

- Considerando que nenhum homem de bem, e canguinha como o senhor traria na carteira, de manhã cedo, notas de 100, 50, 20, ou ainda, considerando que se as tivesse não me daria esses valores como esmola, acredito que os valores máximos carregados consigo em sua carteira são algumas míseras moedas, notas de 1, 2, 5 ou 10 reais, Desconsiderando que o senhor não fosse parar para contar moedas para me dá-las, e que 10 e 5 reais são notas graúdas para vossa senhoria, só me restam as notas de 1 e de 2. Mas o senhor não me daria notas de 2. Esse é um numero par, que representa sempre o dobro de uma unidade. Logo no final de seis meses o senhor teria me dado o dobro do que realmente almejava me conceder. Logo, resta-nos as notas de R$ 1,00. É essa uma nota comum, de pouco valor e que com certeza o senhor sempre carrega uma consigo. Além disso, é esse um número justo para um vagabundo de rua. Um real, para um dia, quem sabe ele tomar vergonha na cara e ir arrumar um trabalho”. Nem muito nem pouco dinheiro; a medida justa para todos, um, um real. Logo, calculado um real, a cada dia, pelo período de seis meses, o senhor me deve exatamente R$ 180,00.

- Mas, isso é um despautério!

- Então, o senhor, insiste em me dar um calote!

- Não mais repita isso, homem! Não sou de dever à ninguém. Tenho nome e honra limpa. Agora mesmo acabo com essa maldita dívida. Toma aqui... Um... Cheque, pera... 180... Não é?... Então, prontinho... Aqui. Pronto! R$ 180,00. Pegue-o! Mais alguma coisa?

- Tudo certinho. Um bom dia para o senhor.

No dia seguinte, ainda muito, chateado por ter desembolsado R$ 180,00, por um motivo tão banal, Joventino estava disposto a dizer claramente para o homem de rua “Não tenho dinheiro para você não”. Qual surpresa não foi a sua quando viu o pedinte arrumado, tomado banho e penteado, numa simples e modesta barraca de mingau. Uma barraca pobre, de madeira, mas bem pregada e limpa. Meio atônito, Joventino pediu um mingau. Curioso, olhava para o homem como se nunca tivesse o visto antes. Servido o mingau, começaram a papear, papear, papear... Conversaram por bons minutos. Acredito que até ouvi uma gargalhada do Joventino. Não sei ao certo. E o mingau custava apenas R$ 1,00.



Augusto F. Guerra